Isto aconteceu comigo, e me deu a necessária liberdade de movimentos para ser um gênio fuleiro do mal. Como dizia Santo Agostinho, é necessário um mínimo de bens materiais para a prática da virtude – e, acrescento, da vilania.
Era um domingo. Eu estava em casa, fazendo sei lá o quê, quando espiei pela janela e vi parar, na frente do meu portão, uma limusine. De dentro dela saíram dois negrões enormes, de ternos pretos e óculos escuros, que ajudaram um camarada gordo e baixinho a sair.
Vocês precisavam ver as roupas do gordinho. Um verdadeiro terno de garçom, com lapelas imensas, todo amarrotado. Ele cambaleava, sendo escorado pelos negrões que caminhavam a seu lado. Vieram direto pra minha porta e tocaram a campainha. Fui eu mesmo atender.
- Lembra de mim? – perguntou o gordinho, com um tremendo bafo de uísque.
O rosto me era vagamente familiar, e foi o que eu disse. Ele me encarou.
- Olha bem. Preste atenção. Me diga de onde você me conhece.
Olhei bem, e a cada segundo sentia aumentar a sensação de reconhecimento, mas ainda não podia dizer de onde é que o conhecia. Finalmente ele disse:
- Fui seu chefe há uns anos atrás.
Olhei de novo, e desta vez o reconheci. Era verdade. Diante de mim estava o “sêo” Gualberto, um dos chefes que mais odiei na minha vida (e eu odiei todos, inclusive minhas doze esposas). Dei uma de bem educado.
- Opa, “sêo” Gualberto, tudo bom?
Ele riu.
- Você me odiava. Nós quebramos altos paus, lembra?
Eu lembrava. Mas continuei no meu papel de bom rapaz.
- É verdade, tivemos alguns atritos, mas nada que o tempo não possa...
- Eu agora sou o presidente da empresa – cortou ele.
- Presidente? – eu disse. – Ora, meus para...
- Corta essa. Vim aqui propor um negócio.E tirou do bolso amarrotado do paletó um cheque todo amassado, num valor que, na época, calculei em dez mil dólares.
- Esse dinheiro pode ser seu – disse ele, - desde que...
Desde quê? – perguntei, ansioso.
- Desde que você deixe eu quebrar os seus dentes. Os da frente. Todos.
Achei que era piada e ameacei rir. Bastou olhar pros olhos baços e gelados dele pra ver que a coisa era séria, e admirei imensamente aquele homem.
- Todos os da frente?
- Todos – ele repetiu.
Fiz um rápido cálculo mental.
- Pague também uma ponte móvel – pedi.
- Pago – ele respondeu.
Eu sorri, arreganhando os dentes. O primeiro murro, ainda fraco e sem direção, veio imediatamente; depois seguiram-se outros, mais fortes, mais convictos, mais poderosos. A dor foi grande, mas suportei corajosamente, com o cheque de dez mil no bolso. Correu muito sangue, e os dentes não ficaram perfeitamente quebrados; os cacos e raízes ainda deram muito trabalho ao dentista, depois.
Eu já ostentava a terceira dentição quando ele voltou. Vinha com dois negrões diferentes (não se pode fazer o mal sem ser bom observador) e um pé de cabra. Estendeu um cheque de um valor que era perto de cinqüenta mil dólares.
- Quero bater nos seus dois joelhos com este pé de cabra.
Deixei. A primeira pancada foi no joelho esquerdo; desabei urrando de dor, me descabelando, fraqueza pela qual me envergonho até hoje – a vileza não prescinde de um certo estoicismo. Mas a dor foi uma coisa difícil de descrever, intensa e abrasante, quase santificadora. Eu ainda estava no chão quando a pancada desceu sobre o joelho direito; o grito foi inaudível, e as lágrimas correram. Ele me pagou as duas artroscopias.
A terceira aparição dele foi quase um ano depois. Eu já havia abandonado a fisioterapia e caminhava pelas ruas, com lentidão, mas caminhava. Ele veio com um terceiro par de negrões e um cheque de duzentos mil dólares.
- Esta vai ser mais complexa. Quero que você extraia um dos seus rins e me dê. Pago a cirurgia, a internação, tudo.
Fui pro hospital. Ele fez questão de acompanhar a cirurgia. Eu estava no meu quarto, com o rim num pote ao meu lado, quando ele entrou. Um dos negrões (era o quarto par) trazia uma espiriteira; outro vinha com uma frigideira. Ele fritou o meu rim e o comeu na minha frente. Pensei, enquanto a anestesia acabava, que ele me amava.
Na quarta vez em que ele veio, o cheque era de um milhão de dólares, e junto vinha um testamento, legando sua herança a mim. Não vou dizer o que ele queria; só digo que teve, porque pagou, e não foi enganado; e que morreu logo depois, o que era esperado. Os negrões, os quintos, saíram bastante machucados, e não querem nem ouvir falar meu nome, no que, aliás, têm razão.
Essa foi a maneira pela qual obtive minha independência financeira. Esse milhão e pouco de dólares em breve se multiplicou, graças a sábios investimentos em lenocínio e transporte de substâncias, e uma política ajuizada de gastos com amantes. Arrivistas sustentam que foi uma forma indigna de enriquecer; eu nego. Ganhei dinheiro e aprendi muito sobre a arte de humilhar, achincalhar e desprezar as pessoas em torno.
Hoje pratico o mal abundantemente e com leveza de espírito. Aliás, meu espírito sempre foi leve, é bom que se diga
REISANGUE
Email do autor : reisangue@ig.com.br
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