Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Uma estória escrita pelo Sousa (1ª parte)


Estória baseada numa nota de rodapé dum romance de Camilo.


O padre Anselmo era homem rijo, nado criado e crescido nas terras duras do Minho, de estatura mediana para a época, de ombros largos, mão fortes mas não calejadas. Mais dado a caçadas no Marão que aos breviários era no entanto fluente no seu latim. Lia Ovídio e Boccaccio no original, decifrava razoavelmente o cavaleiro de Faublas e mesmo aos 45 anos conseguia ler sem a ajuda de óculos. Era respeitado várias milhas em redor e poucos, ou mesmo nenhuns, se atreviam a fazer-lhe frente. Quando na serra e em noites mais negras que a alma dum pecador se cruzava, montado na sua fiel burra, de arcabuz ao ombro e um revolver na cinta, por almas perdidas que nos caminhos da serra viviam de aliviar o próximo dos bens terrenos estes cumprimentavam-no de longe ou afastavam-se.

Muito entre dentes rosnava-se que o padre Anselmo era muito homem para arrefecer o céu da boca do próximo. Provas não as havia. Que se falava isso era verdade. Também tinham sido tempos difíceis em que a autoridade do estado pouco ou nada se fazia sentir, em que os bandidos, ladrões e similares agiam com uma grande impunidade. Se não fosse um homem, de Deus ou laico, tomar em suas mãos a defesa de fazendas e honra das mulheres não era a guarda que o defendia. Se no Porto, em Lisboa e nas capitais de distrito a ordem e segurança , finda a guerra civil, era mais menos garantida pelo estado já nas aldeias e caminhos ermos da serra era cada um por si e Deus por todos. Já desde os tempos do seminário onde fora aluno excelente era temido quer pela sua fornida anatomia quer pela fama que o acompanhava de não ser homem para se ficar. 

Padre Anselmo era Miguelista dos quatro costados. Não se pronunciava muito em público, o que lá vai lá vai, e vivia bem com todos. Mantinha uma certa animosidade contra pedreiros livres mas comentava que havia bons e maus dos dois lados.

Vivia numa casa arejada confinante com a igreja. Com ele a inevitável Maria, velha criada da aldeia, mais velha que o século, magra mas eficientíssima. Como a idade já não lhe permitia grandes esforços era ajudada por uma ou outra cachopa de cores vermelhas, escolhidas pelas suas qualidades de trabalho e seriedade. Em vinte e cinco anos de magistério do padre Anselmo passaram pela casa dezenas de jovens e nunca nada se falou de menos abonatório para a castidade do padre. As moças saiam umas para casar, outras partiram para a cidade grande, algumas – poucas diga-se em abono da verdade – grávidas sem poderem dizer com grande certeza quem era o autor da proeza. Nestes caso o padre Anselmo lá fazia as suas inculcas e não raras vezes descobria o autor da proeza. Como era homem rijo não se livravam de as levar ao altar. 

Houve apenas um caso nesses anos todos dum Joaquim, moço amante do vinho, que ameaçara fazer frente ao padre. O caso conta-se em duas linhas. A Rosa gaga, moça lindíssima de Guilhufe, com um pequeno defeito na fala donde lhe vinha a alcunha, já estava lá em casa por quase dois anos. Entrara magra e com poucas cores mas a cozinha farta da casa do padre, o vinho tinto que vinha das quintas do Douro dos irmãos do padre e o presunto de Lamego doutra quinta da família do padre transformaram em dois meses a Rosa numa flor rosada, de pernas direitas como pinheiros, lábios vermelhos e carnudos. Já se está a ver o que aconteceu. Embora o padre e a Maria a mantivessem em casa o mais possível a moça lá arranjou por artes do diabo maneira de se encontrar com o Joaquim. Quando a gravidez já era impossível de esconder o padre tirou-se dos seus cuidados e foi falar com o Joaquim. Este, certamente por efeito do álcool, disse que não que a moça só esteve com ele há menos dum mês e que não podia ser, que o pai não podia ser ele. Ora o padre Anselmo nestas coisas era inflexível. Sentia-se responsável pelas moças que abrigava e sangrava-lhe o coração ver a perfídia com o Joaquim negava à moça uma satisfação. Cego de fúria moralizante desferiu tal carga de pancada no moça que lhe caíram três dentes e teve de ficar de cama com febre duas semanas. A mãe dele, antiga criada do padre Anselmo, prometera dar à santa Rita advogada das causas perdidas um cordão que tinha – dado pelo padre Anselmo no dia em que saíra de casa dele para casar , imaculada como a virgem – se a santa abrisse o coração do filho, lhe fechasse as feridas que estavam ruins de sarar e este casasse cristãmente e não aborrecesse mais o senhor padre que é tão boa pessoa. 

O tal Joaquim, ainda um pouco cambaleante diga-se, lá casou com a Rosa gaga. A história teria ficado por aqui se o Joaquim não gastasse o dinheiro do cordão que o padre dera à sua agora esposa no dia do casamento mais o da mãe que afinal não o deu à Santa mas à nora, na tasca do vesgo. Embebedava-se abominavelmente e todos os dias. Quando não saia de lá aos ombros de amigos de bebedeiras perdia-se nas ruas a vociferar contra Deus, os padres, a santa religião e outros disparates muitas vezes incompreensíveis  Correu até que em dia de bebedeira maior atribuía a gravidez da mulher ao padre Anselmo. 

Batia na mulher que já tinha dado à luz um robusto rapagão. O nascimento da criança em vez de amaciar o coração do pai parecia ter propiciado maiores e mais frequentes bebedeiras acompanhadas de impropérios na via pública e porrada de criar bicho na mulher a quem apelidava de barregã, puta e outros mimos. Ora quem chama isto à mãe do seu primogénito ou está muito embriagado ou muito má pessoa é. Não raras vezes foi o padre Anselmo chamado a acalmar aquela alma atormentada. Uma vez até tivera o bom do padre de lhe aplicar um correctivo  Não tão forte com o anterior e talvez por isso menos eficaz. Serviu-lhe de emenda por uma ou duas semanas lá voltou ao mesmo. Bebedeiras , escândalo e porrada na pobre da Rosa.


Ai do escândalo mas ai dos escandalosos. Se é certo que se neste mundo corrompido um homem furtar-se ao escândalo é missão impossível já o não provocar escândalo é dever de todo o Cristão.


Deus não dorme. Uma manhã um pastor descobriu o corpo do Joaquim a alguma distância da localidade. Com a borracheira deve ter caído e partido o pescoço ou meteu-se com alguma grupo de malfeitores que pululam por estes caminhos.

A missa foi celebrada pelo padre Anselmo que não perdeu a oportunidade para chamar à atenção dos malefícios do vinho em excesso.

Padre Anselmo era bem visto pelo bispo mas não se dava muito com outros padres. Achava que os padres do Porto e Lisboa eram efeminados e mais dados ao ar poluído dos salões e aos dichotes de damas de duvidosa moral. Gostava Anselmo do ar puro da serra, das gentes simples mas honestas das aldeias e da comida forte. Não raras vezes comia com as jornaleiras partilhando com elas a comida e sempre aproveitava para lhe dar lições de moral simples mas eficazes com gente de pouca cultura, nenhumas letras mas que lhe agradava se sobre maneira. Abençoados os pobres em espírito dizia-lhes muitas vezes.

Uma das moças que fora servir para casa do padre Anselmo fora a Armandina. Moça de 14 anos, cabelo e olhos negros e tez morena. Dedos grandes e finos, lábios capazes de anularem os cílios e jejuns duns estagirita, Dizia-se que devia o aspecto físico aos genes calés que lhe foram transmitidos via avó materna pelas artes dum bigode luzidio dum tal Manolo, cigano itinerante que entre a venda nas feiras de poções milagrosas, tecidos de contrabando e outras mercadorias  e quando os afazeres da venda lhe permitiam, dedicava os seus poucos tempos livres a fazer ganir uma guitarra com acordes tais que fazia vibrar os corações mais empedernidos das virgens, casadas, solteiras e viúvas no raio de duas milhas. 

Só não enternecia as divorciadas porque nesta época mais temente a Deus e em que os bons costumes reinavam não havia divórcio.


 Nem divórcio nem outras invenções modernas como o swing e o casamento gay. Horrores tão bem apontados por João César das Neves nos seus iluminados escritos no Diário de Notícias. Passo a citar com a devida vénia ao autor:

"Neste momento, em Portugal, custa mais despedir a criada do que o marido, pois o contrato de casamento é mais frágil do que o de trabalho ou sociedade."

Não se vá também dizer que nestes não existiam problemas e que a devassidão, homossexualidade, adultério e outros males do mundo não existiam. Existiam mas estavam confinados a entre paredes, debaixo dos lençóis e muito à socapa. Havia respeito pela moral e a honra não era palavra vã.
O casamento era para sempre e até à morte. O marido se sentia necessidades só capazes de serem satisfeitas fora do tálamo conjugal lá se desenrascava o melhor que podia mas discretamente. As mulheres tentavam fazer o mesmo mas já se sabe que os riscos eram maiores.  


Divago eu com o João Carreira das Neves e esqueço-me da Armandina.



Continua........

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