Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Engraçado como me faz lembrar alguns dos nossos ministros.

É curioso observar quantos homens públicos do nosso país têm esta aparência apagada, vazia, vaga, abstracta, sonâmbula; e, todavia, eu que pelo Conde fui admitido a conhecê-los, sei quanto génio habita em segredo naquelas cabeças calvas ou cabeludas, a que os superficiais, não lhes conhecendo as secretas riquezas, acham um aspecto alvar. É que nós somos uma raça reservada, inimiga da ostentação e das atitudes: ao inverso dos franceses, que mal têm uma ponta de talento, tratam de o fazer brilhar, reluzir, deslumbrar, nós, com vastidões de génio no interior, desprezamos estas demonstrações vaidosas e guardamos para nós mesmos as nossas riquezas intelectuais. Assim faz o árabe, que cerca os seus jardins deliciosos e as suas habitações douradas de um muro negro de pedra e lama, de modo que se julga ver uma cabana onde realmente existe uma Alhambra! Mas não somos nós de raça árabe?
Por isso nunca o Conselheiro Gama Torres se dignou fazer à Bandeira Nacional a esmola de uma ideia. Deu-lhe, porém, a protecção do seu nome; dizia-se «a Bandeira do Gama Torres» e isto trazia ao jornal uma autoridade imprevista.
Muitas vezes, segundo me contou o Conde, durante os meses de Estio em que a política, refugiada na sombra das quintas ou na frescura das praias, dormita, o redactor da Bandeira, sem assunto para o seu artigo de fundo, recorria ao génio do Conselheiro, como um pobre envergonhado. Gama Torres, porém, colocando-se no meio da casa, as pernas afastadas, o ventre saliente, as mãos atrás das costas, fitava o soalho e.23 bamboleando o crânio fecundo, murmurava surdamente:
– Ele há muitas questões!... Há questões terríveis. Há a prostituição... o pauperismo... Ele há muitas questões...
Mas, repito-o, era um avaro intelectual que não gostava de fazer a esmola de uma ideia. Não o censuro, pois é sabido que ele dava todo o seu tempo e todo o seu génio às grandes questões sociais. Elas preocupavam-no tanto que era usual – sempre que diante dele se falava de assuntos políticos – ouvi-lo murmurar soturnamente:
– Ele há muitas questões! Questões terríveis: o pauperismo, a prostituição! São grandes questões! Questões terríveis!

Do Conde D´Abranhos do Eça.

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