Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol
terça-feira, 19 de abril de 2005
O jovem Abranhos bem depressa mostrou, em Coimbra, o seu profundo amor da Disciplina e da Ordem.
O lente de Direito Natural era então o velho Dr. Pascoal; já muito míope, a sua veneranda ciência, os seus achaques, os seus serviços de decano, inspiravam a todos os que admiram estes vetustos sábios encanecidos nos comentários de vetustos compêndios, uma admiração simpática.
Havia, porém, nesse curso (a recordação recente das guerras civis de algum modo o explica) temperamentos rebeldes e perniciosos, que, por o ancião pertencer a uma velha família Miguelista, procuravam como dizia o Conde, achincalhar a prelecção. Foi assim que uma ocasião, de repente, de entre os bancos, um morcego solta o voo, e estonteado pela luz, esvoaça furiosamente, vai bater nos vidros, vai bater nas paredes, vai bater, finalmente, no rosto venerável do Dr. Pascoal. O velho grita, o archeiro corre... Mas, como diz o nosso grande poeta, autor dos Cânticos do Céu:
Quem sabe donde vem a aragem fresca?
Quem sabe donde vem o voo d'ave?
Quem sabe de onde vinha o morcego?
No dia seguinte, tinha justamente o venerando doutor aberto a pauta - quando outro morcego, maior, mais negro, começa a esvoaçar furiosamente pela aula! O respeitável Dr. Pascoal fechou a pauta, saiu da aula, todo trémulo, todo branco...
Alípio, porém, vira o condiscípulo indigno que soltara os morcegos, e ali mesmo, na geral, decidiu, por amor da disciplina violada e do professorado ultrajado, acusá-lo ao decano. Mas como repugnava ao seu carácter leal ir, de viva voz, a casa do Dr. Pascoal, denunciar o condiscípulo, redigiu uma carta anónima com estas palavras:
O vilão que arrojou o morcego às faces de V. Ex.ª perturbou o recinto escolar, é o nº 89!
Era um certo Adriano Cravilho, que - posto que de uma inteligência notável e de.18 um temperamento honesto - tinha, como se diz em Coimbra, «o furor de fazer partidas».
Uma semana depois, condenado por um processo secreto e sumário, era riscado da Universidade perpetuamente. O respeitável Dr. Pascoal, porém, ficara tão reconhecido ao «anónimo» que lhe revelara o autor do malefício, que costumava dizer no conselho da faculdade, que, se soubesse quem era, «pespegava-lhe um accessit no fim do ano. Porque enfim, colegas, livrou a aula de um malvado!»
Estas palavras, espalhadas, impressionaram Alípio. O seu acto apareceu-lhe revestido de uma importância inesperada; examinando-o, descobria-lhe a nobreza, via-o como um verdadeiro serviço feito à Ciência, à Disciplina, à Ordem, ao princípio autoritário. E considerava que se é justifi-cado o pudor que nos faz ocultar o serviço feito a um amigo, há uma falsa modéstia em esconder um benefício prestado à sociedade. Pode esquivar-se ao reconhecimento quem salva um homem - não quem salva um princípio!
E dias antes dos actos, dirigiu-se a casa do Dr. Pascoal, e escrevendo diante dele as palavras textuais da carta anónima, convidou-o a comparar as letras, provando ao venerável professor que era ele, Alípio Abranhos, quem prestara aquele serviço tão marcante à Disciplina.
- Pois faz favor de deixar o seu nome... faz favor de deixar o seu nome - exclamou o ancião, que estava na idade em que a memória é como tela gasta, que, repuxada, se esgaça.
Alípio deixou o seu nome - e no fim do ano recebia o 1º accessit.
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