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terça-feira, 31 de maio de 2005

Carta de Eça de Queirós a Camilo Castello Branco

“A Carta a Camilo Castelo Branco, aliás publicada só depois da morte de ambos os escritores, há de perdurar como uma das mais belas páginas queirozianas, sobretudo sob o ponto de vista do humour. Deveremos, talvez, lamentar que não tivesse vindo a público em devido tempo, pois decerto provocaria acirrada polêmica, estranha e curiosa competição: ironias subtis e ferinas golpeando a sorrir contra um sarcástico e violento gargalhar-demolidor”.

Augusto Pissarra

Ex.mo Sr.


Um tardio correio trouxe-me ontem um número, já quase velho, das Novidades, com um artigo, Notas à Procissão dos Moribundos, em que V. Ex.a., resmungando e rabujando, se queixa ao público de que eu e os meus amigos implicamos consigo, sempre que isso vem a talho de fouce, e lhe assacamos aleivosias. Como exemplo deste indecoroso hábito, cita V. Ex.a. um período da minha carta a Bernardo Pindela nos Azulejos, em que eu alegremente me rio dos discípulos do romanticismo que, depois de clamarem contra certos escritores, como realistas e chafurdadores do lodo, apenas imaginam que o público só esse lodo apetece, para seu consumo intelectual, se apressam a escrever na capa de seus livros: romance realista, para que o público, aliciado pelo rótulo, os compre também a eles, e os leia também a eles... E V. Ex.a., meu caro confrade, acrescenta logo com a mais consciente certeza: “Ora isto é comigo!”


Suponha que um dia, numa novela, V. Ex.a. descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas... E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: “Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada... É comigo!” Que diria V. Ex.a., meu prezado confrade?


V. Ex.a. balbuciaria aturdido: “Eu não sei, eu vivo longe... Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância... Mas, na verdade, creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais tênue, remota intenção...” Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Ex.a. E assim eu digo. V. Ex.a. deve conhecer melhor que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos meus livros; se V. Ex.a., para atrair a multidão, nelas colou ou consentiu que os seus editores colassem, esse rótulo: romance realista — por não poderem legalmente adorná-las com esse outro mais cativante: romance obsceno — então decerto aquilo é consigo. Mas a intransigente verdade me força a confessar que, escrevendo esse período da carta a Bernardo Pindela, eu não pensava no autor da Corja. Se eu quisesse acusar dessa abjeta concessão, às exigências da venda, um homem que há trinta anos é ilustre na literatura portuguesa — teria escrito o nome todo de V. Ex.a., sem omitir um só título. Há personalidades a quem por isso mesmo que são fortes, se não alude timoratamente e de longe. Já deste modo se pensava na corte de El-Rei Artur. “Se queres falar de Percival, dize bem alto: Percival, e tira a espada.” Assim gritava esse cavaleiro, flor dos bons, na velha cidade de Camerlon, uma tarde em que havia algazarra e ciúmes junto à Távola Redonda. Não se trata, decerto, aqui, de compridas espadas a desembainhar. Mas não deixa de ficar bem a um débil homem de letras, como eu, o seguir essa lição de lealdade e valor dada pelo possante homem de armas Percival.


Assim o exemplo aduzido por V. Ex.a., para demonstrar o meu escandaloso hábito de implicar consigo — é realmente mal escolhido. Mas permanece, todavia, a queixa, feita ao público com tanta rabugem e tanto azedume, de que — eu e os meus amigos, sempre que isso vem a talho de fouce, lhe assacamos aleivosias.


Aleivosia é um termo formidável e sombrio que, se me não engana o vetusto e único dicionário que me ampara nesta dura labutação do estilo, significa — “maldade cometida traiçoeiramente com mostras de amizade, insídia, perfídia, maquinação contra a vida e reputação de alguém, etc.” Tudo isto é pavoroso. Mas eu suponho que, sob essas vagas palavras de implicação e aleivosia, V. Ex.a. quer muito simplesmente queixar-se de que eu e os meus amigos o não consideramos um escritor tão ilustre, com um tão alto lugar nas letras portuguesas como o costumam considerar os amigos de V. Ex.a. Ora aqui V. Ex.a. se ilude singularmente.


Eu nunca tive, é certo, a oportunidade deleitável de apreciar, nem em copioso artigo, nem sequer em curta linha, a obra de V. Ex.a. Mas sou meridional, portanto loquaz. Por vezes, entre amigos e fumando a cigarette, tem vindo “a talho de fouce” conversar sobre a personalidade literária de V. Ex.a. E, louvado seja Apolo aurinitente, sempre me exprimi sobre o autor do Esqueleto, de um modo que é irrecusavelmente mais digno dele e da sua obra, do que esse outro estranho modo por que o costumam decantar aqueles que se ufanam, já na palestra, já na imprensa, de serem seus amigos e seus discípulos.


Porque eu, falando de V. Ex.a., considero sempre a sua imaginação, a sua maneira de ver o mundo, o seu sentimento vivo ou confuso da realidade, o seu gosto, a sua arte de composição, a fraqueza ou força do seu traço; e, pelo menos, admiro sem reserva em V. Ex.a. o ardente satírico, neto de Quevedo, que põe ao serviço da sua apaixonada misantropia, o mais quente e o mais rico sarcasmo peninsular. E os seus amigos, esses, admiram apenas em V. Ex.a., secamente e pecamente, o homem que em Portugal conhece mais termos do dicionário!


Sempre, “a todo o talho de fouce”, em artigo, em local, em anúncio de partida, em felicitação de dia de anos, V. Ex.a. é pelos seus discípulos e amigos louvaminhado e turibulado — como o grande homem do vocábulo, esteio forte de prosódia, restaurador da ordem gramatical, supremo arquiteto das frases arcaicas, acima de tudo castiço, e imaculadamente purista! E ainda mais na intimidade, os amigos de V. Ex.a. o celebram como o homem que melhor sabe descompor o seu semelhante! E isto tão obstinadamente murmurado ou clamado, que esta geração mais nova, para quem já vou sendo um velho e V. Ex.a. quase um fantasma, não tendo como eu e os do meu tempo rido e chorado sobre os seus livros de paixão e de ironia, o imaginam a V. Ex.a. um intolerável caturra, de capote de frade, debruçado sobre um sebento léxicon, a respigar termos obsoletos para com eles apedrejar todos os seus conterrâneos!


A V. Ex.a, crítico sagaz de si mesmo, melhor compete avaliar o que, neste vale de prosa e lágrimas, tem feito para merecer que os seus amigos, como os amigos de César no dia das lupercais, teimem em lhe enterrar até aos ombros esta dupla e pesada coroa da vernaculidade e da descompostura.


A mim só me compete lamentar que a estas mofinas proporções tenha sido reduzida, pelo zelo crítico dos seus amigos, a larga individualidade que nos deu o Amor de Perdição. Mas ao mesmo tempo adquiro o direito de rogar a V. Ex.a. que, quando se queixar aos ventos e ao Chiado das pessoas que implicam consigo, como V. Ex.a. diz, ou que desdouram a sua glória, como eu traduzo, não se volte para mim e para os meus amigos — mas olhe em torno de si para os seus admiradores, e para dentro de si mesmo, talvez.


A guerra de realistas e idealistas, causa primordial destas explicações, tornou-se já quase tão desinteressante e cediça, meu prezado confrade, como a guerra dos clássicos e românticos, a das Duas Rosas, ou essa outra que, para vantagem única dos livreiros que editam Homero, dous povos semibárbaros tiveram a paciência de arrastar dez anos em torno de uma vila da Ásia Menor murada de adobe e tijolo. Renovar tão antiquada guerra nas gazetas, é já um ato imperdoavelmente provinciano; mas mais provinciano ainda é estarmos nós aqui, com grãos de incenso nas mãos, e pedras nas algibeiras, fazendo, através do grande mar, mútuas e lentas mesuras. V. Ex.a., de lá, dentre os seus sinceros arvoredos minhotos, ajanota as suas frases pelos figurinos de Filinto Elísio, para me dizer gaguejando, e com agridoce generosidade: “O meu caro amigo tem muito talento, com exceção de escrever muita tolice”. E eu de cá, mais pérfido, porque habito as cidades, grito sem gaguejar, e com polida efusão: — “E o meu caro amigo tem ainda muito mais, sem exceção absolutamente nenhuma”.


É infantil. Antes desperdiçássemos o nosso tempo, preguiçando patriarcalmente, neste doce calor de junho, sob a figueira e a vinha... Mas quê! V. Ex.a., que estava brincando funebremente, a fazer no soalho, com tochas de fósforos, uma procissãozinha de moribundos, ergue-se de repente, corre para o público, mesmo sem tirar o babeiro, e acusa-me, entre lágrimas de furor, de estar sempre a implicar consigo! Que havia eu de fazer, eu inocente e justo? Corro também para o público, mesmo de jaquetão de trabalho, e brado profusamente com as mãos sobre o peito: “Nunca! É falso! Jamais impliquei com ele, e não lhe quero senão bem!”


A culpa de toda esta inútil prosa é portanto toda sua; e para que ela se não prolongue mais, apresso-me, prezado confrade, a dizer-me


De V. Ex.a.
Sincero e antigo admirador
Eça de Queirós



— Fim —

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