Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

terça-feira, 3 de maio de 2005

Cenas deliciosas dos Maias......


- O meu caso é este, Sr. Carlos da Maia. Há pessoas em Lisboa que me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brasil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo por ser falso. E V. Exc.ª compreende que eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de marido infeliz, visto que a não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho intenção de dizer a outros, que aquela senhora não é minha mulher.
Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas ele conservava uma face muda, impenetrável, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lívidez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça, como acolhendo placidamente aquela revelação, que tornava outra qualquer palavra entre eles desnecessária e vã.
Mas Castro Gomes encolhera de leve os ombros, com uma lânguida resignação, como quem atribue tudo à malícia dos Destinos.
- São as ridículas cenas da vida... O Sr. Carlos da Maia está daí a ver as coisas. É a velha, a clássica história... Há três anos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado de ir ao Brasil, trouxe-a a Lisboa para não vir sozinho. Fomos para o hotel Central. V. Exc.ª compreende perfeitamente que eu não fui fazer confidências ao gerente do estabelecimento. Aquela senhora vinha comigo, dormia comigo, portanto, para todos os efeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou enfim um amante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes, mesmo nas circunstâncias mais particularmente desagradáveis para Castro Gomes... E, meu Deus! não podemos realmente condena-la muito... Achava-se por acaso revestida duma excelente posição social e dum nome puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguém, a declarar que posição e nome eram de empréstimo e ela era apenas «Fulana de tal, amigada...» De resto, sejamos justos, ela não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou à matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguém, a não ser a um pai que lhe quisesse apresentar sua filha, saída do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ela tomou a governante inglesa. As inglesas são tão exigentes!... Aquela, sobretudo, uma rapariga tão séria... Enfim tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retiro solenemente o nome que lhe emprestara; e ela fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren.
Carlos ergueu-se, lívido. E com as mãos fincadas nas costas da cadeira tão fortemente, que quasi lhe esgaçava o estofo:
- Mais nada, creio eu?
Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despediu.
- Mais nada, disse ele tomando o chapéu e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a V. Exc.ª suspeitas injustas, que aquela senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente há três anos... Vinha dos braços dum qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu pagava.
Completara com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, numa sacudidela brusca. E, diante desta nova rudeza que revelava só mortificação, Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou:
- Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pesar de ter feito o conhecimento de V. Exc.ª por um motivo tão desagradável... Tão desagradável para mim.


Eça de Queirós , os Maias
Posted by Hello

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