Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

sábado, 25 de junho de 2005

José Rodrigues Miguéis.

Infelizmente o José Rodrigues Miguéis anda um bocado esquecido. É pena. Aqui segue um bocadito dum conto : Léah e outras Histórias


Edições
Léah e outras Histórias 1ª edição


Edição LiteráriaLisboa: Estúdios Cor, 1958


Léah e outras Histórias 11ª edição


Edição LiteráriaLisboa: Estampa, 1997


Nessa altura virei‑me para ti, Léah, e vi‑te: pela primeira vez. A luz das janelas dava‑te em cheio na cara, e reparei que eras bonita, nova e séria. A tua boca entreaberta de espanto, viva e carnuda, mostrava os dentes brancos, delicadamente implantados; os teus olhos redondos, límpidos, cinzentos, miravam com sincero horror a desordem do quarto; os teus seios, fortes e salientes, ainda arquejavam da carreira em que tinhas subido; e no teu pescoço, branco e solidamente afeiçoado, havia um refego delicado e via‑se latejar uma artéria. Os teus cabelos eram ondulados e dum louro‑queimado; e eras quase da minha estatura, rosada, fresca e reluzente como um grande fruto. Tinhas a cintura estreita, e as tuas ancas alargavam‑se numa curva criadora e firme.
Ao ver‑te assim, a minha voz baixou, amoleceu, suavizou‑se:
—Mademoiselle,—e o coração batia‑me—por que razão é que eu venho encontrar o quarto por arrumar? Sou forçado a sair outra vez, quando vinha para trabalhar. Não pago a minha renda? Todas as atenções são para os outros, e eu...
Fitaste‑me nos olhos e toda tu tiveste um sorriso de simpatia irónica e bondosa:
—Pauv' M'sieu Carlôss!
Fomos entrando.
—Léah,—disse eu, e fui fechar a porta—porque é que nunca vem ao meu quarto?
—Mas o senhor nuncame chama! Se me chamasse eu vinha. Além disso, a patroa diz que o senhor quer que seja ela, e não eu, a arrumar‑lhe o quarto.
—Oh!
—Tem muita consideração por si. Um doutor. Diz que é o melhor hóspede que tem na casa, o mais decente. E eutambém acho. Um homem tão limpo, tão bem educado. Mas é muito orgulhoso, não é? Não fala com ninguém.
O teu espanto era tão sincero e adorável, que desatei a rir, aliviado. Riste comigo. Agarrei‑te as mãos, e explicaste‑meentão, numa voz macia e confidencial, que Monsieur Albert, o vizinho das traseiras, pagava mil francos, uma enormidade, pelo seu quartier com pensão, e que por isso era preciso tratá‑lo bem, e era fraco de cabeça, estava sempre a chamar, passava todo o dia ali metido, queria bombons a todas as horas, e tu sempre escada abaixo, escada acima, por causa de Monsieur Albert, que era tolinho mas tinha dinheiro para gastar, que a família lhe mandava, e era a família que o tinha posto ali de combinação com a Lambertin, que bebia cervejas e conhaques à saúde de Monsieur Albert, e ele pagava tudo adiantado às semanas, e mais. Tudo isto mo disseste dum fôlego, num grande esfoço de me convencer, abrindo muito os olhos, batendo as narinas, aproximando‑te e estendendo para mim os lábios vermelhos, que eu não podia desfitar.
—Sim—disse eu com reserva, e recuando.—Mas a menina passa tanto tempo a entretê‑lo!
Que palavras aquelas! Talvez tu não saibas, Léah, o mérito, a graça, o poder da candura. Nesse instante foste o assombro vivo, inocentemente expresso. (Era eu que tinha a alma cheia de venenos.) E como se não fosse aquela a primeira vez que nos falávamos (na verdade era a primeira que nos víamos); como se entre nós existisse uma velha amizade com musgo nas paredes, um amor já fossilizado em hábito, uma intimidade inconsciente, que um facto inesperado, um traço de carácter até então oculto viesse surpreender, tu exclamaste com mágoa e assombro, penalizada de me ter feito mal sem o saber:
—Então o senhor tinha ciúmes? E eu que não sabia! Meu Deus, se eu tivesse sabido... Desculpe!
Toda tu te abriste e rescendeste como uma flor, e quase ias caindo para trás, ou assim me pareceu, pre­texto meu talvez para te agarrar pela cintura. Léah, foi a partir desse instante, juro, que eu te amei. Foi nesse instante que o gelo se rompeu em mim, e desejei apertar-te e beijar-te, e adormecer depois no teu seio flamengo e bom.

1 comentário:

Anónimo disse...

É verdade! Bem esquecido anda este autor. Acabo de ler o livro que refere e estou deveras agradado com a boa impressão que me deixou. Um abraço!