Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

quarta-feira, 22 de junho de 2005

A ler ou reler

Tinha sonhado com a minha avó e ao chegar à janela antes da manhã, atravessando os móveis sem tocar no soalho como se continuasse a dormir
(o corpo era a sombra do meu corpo movendo-se sem peso nos chinelos porque o corpo verdadeiro permanecia na cama, nesta cama ou em Coimbra há muitos anos, perto dos salgueiros altos, a eu crescida observando a eu pequena ou a eu pequena observando a eu crescida, não sei)
ao chegar à janela o anúncio luminoso da pastelaria do largo a que faltava uma letra, metade submergido no meu sono e metade de fora, pálido contra o céu pálido e os ramos das árvores, piscava sobre o toldo as palavras balas morteiros, reparou em mim, notou que se enganara, envergonhou-se, corou, mudou muito depressa para bolos caseiros, e nisto dei pelo cheiro de aguardente que pertencia ao meu sonho
não bem um sonho mas como as coisas eram em Coimbra, o restaurante da minha família no rés-do-chão, os quartos no andar de cima, a minha avó
Mamã Alicia
que não falava português, falava galego e depois da morte do meu avô presidia ao negócio e à casa: por não lograr mexer-se, derivado ao reumático, duas empregadas lavavam-na, vestiam-na, molhavam-lhe o cabelo num alguidar de aguardente para fazer a trança, colocavam-na na cadeira no topo das escadas da qual dirigia as ementas, resolvia os diferendos, se zangava com os filhos, verificava as contas à noite num caderninho de escola, a minha avó, autoritária e entrevada, chamando-me com o dedo aterrador
– Mimi
a afastar netos e gatos, lembro-me do cacarejo das galinhas no quintal misturado com o cacarejo dos salgueiros, galinhas e salgueiros bicando caliça em gestos enervados, eu a chegar-me a medo na esperança que os degraus não acabassem nunca, a pensar
– Vai bater-me
o anúncio apagou-se de súbito, era dia, daqui a nada desenganchavam os taipais do ourives, daqui a nada o meu marido acordava
– Que estás tu a fazer anda cá
o movimento sob os cobertores de um bicho confuso que se agita, desperta, se transforma devagarinho em pernas, braços, fragmentos que se unem até compor um homem
(quando o Tejo se acalma a lua junta na água os pedaços dispersos)
a minha avó, em lugar de bater-me, mandou às empregadas que fechassem a porta, envolveu-me no cheiro de aguardente, esticou a orelha à direita e à esquerda, as galinhas e os salgueiros calaram-se, respeitosos, conforme o mundo se calava a uma ordem sua, cochichou
– Não contes a ninguém vou ensinar-te um segredo
sabia tudo, lia revistas em espanhol, conhecia as estrelas
Aldebarã
aconselhava testamentos e partos, despedia cozinheiras, adivinhava os relâmpagos, jurava que na Galiza chove o tempo inteiro e nascem rosas do mar, sempre vestida de branco como uma noiva antiga desde que o meu avô morreu, exigia que lhe trouxessem as flores de laranjeira do casamento numa redoma fosca, poisava a redoma no colo e ninguém se atrevia a falar, as travessas deslizavam sem ruído, o meu tio doente dos pulmões apagava a telefonia, o meu pai empoleirado na caixa registadora ajeitava de imediato a gravata
Aldebarã
um segredo de quem conhece as estrelas e governa o mundo, eu a atravessar de novo os móveis sem tocar no chão e a deitar-me na cama, o bicho confuso fungou no travesseiro, balas morteiros, o avião do ministro, o automóvel na berma da estrada, o sócio do meu marido, sem metade da cabeça, a escorregar para o chão, pessoas que entravam, saíam, se demoravam na garagem, trapos rotos de frases flutuando ao acaso, um queixo que apontava para mim, eu aproximando-me corredor adiante com o cesto do tricô, a manga do meu marido, feita pássaro, a sacudir receios
– Diga à vontade senhor bispo ela é surda não ouve
Aldebarã, a Galiza onde chove o tempo inteiro, rosas que nascem do mar, comprei-lhe um telefone especial com uma luzinha que acende, se o senhor bispo pegasse no auscultador não percebia nada, guinchos e mais guinchos, tudo torcido aos uivos, repita-me lá essa do padre comunista, eu sem mudar de expressão com o meu sorriso de surda, a minha avó empoleirada no seu trono combinou gasosa, café e açúcar em manigâncias misteriosas, deteve-se na suspeita de um parente interessado, uma empregada que os filhos subornaram na copa, não esqueci o cheiro de aguardente da trança
Mamã Alicia
acordo com ele nos meus sonhos, encontro-o na almofada, nos lençóis, nas árvores do largo
juro
– Não contes a ninguém que te expliquei a fórmula da coca-cola
a vantagem dos americanos, aquilo que os fazia ganhar guerras e os tornava ricos, eu riquíssima
– Vais ser riquíssima Mimi vais casar com um conde
dona de Nova Iorque, de todos os cinemas da Galiza e Portugal, de vinte prédios em Coimbra, da Ford, a minha avó e eu conspirativas, solenes, de estores descidos, provando um golinho arrepiadas pelo dinheiro futuro, cestos de roupa suja a transbordarem notas, gavetas pesadas de moedas, jardineiro, mordomo, quando meses depois a levaram, escanzelada, respirando por um cantinho do peito a fim de morrer no hospital
o automóvel na berma e o sócio do meu marido, sem metade da cabeça, a escorregar para o chão
comandou aos bombeiros que parassem a maca a prevenir-me, inquieta que a família ou os americanos presumissem e homens de metrelhadora me saíssem ao encontro no regresso da escola, a minha avó como se cada palavra fosse um balde de pedras que a língua transportava boca acima
– Não contes a ninguém
não contei a ninguém avó, não tenho cinemas, não sou rica, não casei com um conde

Exortação aos crocodilos ANTÓNIO LOBO ANTUNES

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