Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

Inveja

Digam lá se isto não é de morrer de inveja:

Como é que estes filhos da p(/& escrevem tão bem ?
Não deveriam ser executados na praça pública?

Os livros não. Só eles.

Enfim…inveja…

Ora leiam:


Até aos seis anos, Iolanda, não conheci a família da minha mãe nem o odor dos castanheiros que o vento trazia da Buraca, com as ovelhas e os chibos que galgavam a Calçada na direcção do cemitério abandonado, tangidos por um velho de bóina e pelas vozes dos mortos. Ainda hoje, meu amor, estendido na cama à espera do efeito do valium, me sucede como nas tardes de verão em que me deitava, à procura de fresco, num bairro de jazigos destroçados: sinto um ornato de sepultura magoar-me a perna, oiço a erva das campas no lençol, vejo os serafins e os Cristos de gesso que me ameaçam com as mãos quebradas; uma mulher de chapéu plantava couves e nabos nas raízes dos ciprestes; os badalos dos cabritos tilintavam na capela sem imagens, reduzida a três paredes calcinadas e a um pedaço de altar com toalhinha submerso em trepadeiras; e eu observava a noite avançar lápide a lápide, coagulando as bênçãos dos santos em manchas de trevas.
in A Ordem Natural das Coisas, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992, pp. 11-16
Mas o gajo continua. Podia para de escrever mas teimosamente continua só para nos irritar:

– Dêem um beijo ao vosso pai
as fossas nasais enormes, o pescoço encordoado de manchas ocupado no trabalho enorme de tentar respirar
(notava-se a aflição das costelas)
ensarilhei-me numa das bengalas e a bengala tombou no barulho mais forte que até hoje ouvi, o meu irmão que gritava com as trovoadas e mergulhava de gatas sob os móveis a agarrar-se à cadeira, de pingos de chocolate no bibe
– Não dou beijo nenhum
o meu pai com um atrito de caruncho na garganta, nesse dia almoçámos na copa a escutar a chuva no telhado, os criados faziam sanduíches, espetavam croquetes em palitos, levavam-nos em bandejas para cima, automóveis das outras fazendas no jardim, a minha irmã para a minha mãe a tentar escapar dos soldados de uniforme em tiras
– Sai sai
– Mãe
abrindo-nos a bagagem, rasgando-nos as algibeiras, tirando-me o fio, o sargento da cobra, a rodar o escovilhão, ligou um rádio de pilhas como se fosse feriado e estivesse com os compinchas na cantina, a música saltou de um charco de crepitações e ensurdeceu-nos, a minha mãe empurrou um dos soldados com a carteira
– Oferece-lhes os brincos para nos deixarem em paz Clarisse oferece-lhes o que eles quiserem
foi então que reparei num corpo deitado junto à cobra, um tropa a quem faltava metade da cabeça coberto de varejeiras, belisquei o cotovelo da Lena, a Lena baixinho
– Cala-te
um soldado bateu-lhe com a coronha na barriga
a barriga que nunca teve um filho sabes a novidade segura-te bem não desmaies adivinha quem o Carlos namora



in O Esplendor de Portugal, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997, pp. 11-14

Não é de dar um tiro no autor ? Não se pode ser invejoso ?

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