Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

sábado, 3 de junho de 2006

ao A para ler e meditar. Recado do Eça, nos Maias

Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escrito a lápis «Hotel Bragança»... Baptista voltara com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a devagar, saiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficara de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo.
No salão nobre, forrado de brocados cor de musgo de outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado à borda do sofá, a esplêndida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bela e forte no seu vestido de veludo escarlate de caçadora inglesa. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéu branco na mão, sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquele soberbo Constable... Com um gesto rígido, Carlos, muito pálido, indicou-lhe o sofá. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um botão de rosas, os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabelos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de secura, de fadiga.
- Eu possuo também em Paris um Constable muito chic, disse ele, sem embaraço, num tom arrastado, cheio de rr, que o sotaque brasileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena paisagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia da muito tom a uma galeria. É necessário te-lo.
Carlos, defronte numa cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a imobilidade dum mármore. E, perante aquele modo afável, uma ideia ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimivel chama de cólera. Carlos Gomes decerto não sabia nada! chegara, desembarcara, correra aos Olivais, dormira nos Olivais! Era o marido, era novo, tivera-a já nos braços - a ela! E agora ali estava, tranquilo, de flor ao peito, falando de Constable! O único desejo de Carlos, nesse instante, era que aquele homem o insultasse.
No entanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...
- O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei esta manhã ás dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.
Fez-se um alívio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda, aqueles secos lábios não a tinham tocado! E saiu enfim da sua rigidez de mármore, teve um movimento atento, aproximando de leve a cadeira.
Castro Gomes no entanto, tendo pousado o chapéu, tirara do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monograma de ouro; e, vagaroso, procurava entre os papéis uma carta... Depois, com ela na mão, muito tranquilamente:
- Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escrito anónimo... Mas não creia V. Exc.ª que foi ele que me levou a atravessar à pressa o Atlântico. Seria o maior dos ridículos... E desejo também afirmar-lhe que todo o conteúdo dele me deixou perfeitamente indiferente... Aqui o tem. Quer V. Exc.ª lê-lo, ou quer que eu leia?
Carlos murmurou com um esforço:
- Leia V. Exc.ª
Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.
- Como V. Exc.ª vê, é a carta anónima em todo o seu horror: papel de mercearia, pautadinho de azul; caligrafia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui está como ele se exprime: «Um homem «que teve a honra de apertar a mão de V. Exc.ª» Eu dispensava a honra... «que teve a hora de apertar a mão de V. Exc.ª e de apreciar o seu «cavalheirismo, julga dever preveni-lo que sua mulher é, à vista de toda a «Lisboa, a amante dum rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da «Maia, que vive numa casa ás Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. Este «herói, que é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivais, «onde instalou a mulher de V. Exc.ª e onde a vai ver todos os dias, ficando «ás vezes, com escândalo da vizinhança, até de madrugada. Assim o nome «honrado de V. Exc.ª anda pelas lamas da capital.» É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ela diz é incontestavelmente exacto... O Sr. Carlos da Maia é pois publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante dessa senhora.
Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, numa aceitação inteira de todas as responsabilidades:
- Não tenho então nada a dizer a V. Exc.ª senão que estou ás suas ordens!...
Uma fugitiva onda de sangue avivou a palidez morena de Castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente:
- Perdão... O Sr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma solução, violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, ler-lhe este papel... A coisa é inteiramente outra.
Carlos recaíra na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada daquela voz ia-se-lhe tornando intolerável. Um confuso terror do que viria desses lábios, que sorriam com uma palidez impertinente, quasi fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que saísse daquela sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma torpeza!...
O outro passou os dedos no bigode, e prosseguiu, devagar, arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão:
- O meu caso é este, Sr. Carlos da Maia. Há pessoas em Lisboa que me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brasil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher desse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradável, sobretudo por ser falso. E V. Exc.ª compreende que eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de marido infeliz, visto que a não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho intenção de dizer a outros, que aquela senhora não é minha mulher.
Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas ele conservava uma face muda, impenetrável, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lívidez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça, como acolhendo placidamente aquela revelação, que tornava outra qualquer palavra entre eles desnecessária e vã.
Mas Castro Gomes encolhera de leve os ombros, com uma lânguida resignação, como quem atribue tudo à malícia dos Destinos.
- São as ridículas cenas da vida... O Sr. Carlos da Maia está daí a ver as coisas. É a velha, a clássica história... Há três anos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado de ir ao Brasil, trouxe-a a Lisboa para não vir sozinho. Fomos para o hotel Central. V. Exc.ª compreende perfeitamente que eu não fui fazer confidências ao gerente do estabelecimento. Aquela senhora vinha comigo, dormia comigo, portanto, para todos os efeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou enfim um amante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes, mesmo nas circunstâncias mais particularmente desagradáveis para Castro Gomes... E, meu Deus! não podemos realmente condena-la muito... Achava-se por acaso revestida duma excelente posição social e dum nome puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguém, a declarar que posição e nome eram de empréstimo e ela era apenas «Fulana de tal, amigada...» De resto, sejamos justos, ela não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou à matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguém, a não ser a um pai que lhe quisesse apresentar sua filha, saída do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ela tomou a governante inglesa. As inglesas são tão exigentes!... Aquela, sobretudo, uma rapariga tão séria... Enfim tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retiro solenemente o nome que lhe emprestara; e ela fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren.
Carlos ergueu-se, lívido. E com as mãos fincadas nas costas da cadeira tão fortemente, que quasi lhe esgaçava o estofo:
- Mais nada, creio eu?
Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despediu.
- Mais nada, disse ele tomando o chapéu e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a V. Exc.ª suspeitas injustas, que aquela senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é minha filha... Eu conheço a mãe somente há três anos... Vinha dos braços dum qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu pagava.

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