
O comboio, meu amor, deslocou-se rumo ao Estoril e a Cascais (do sítio onde moramos lobrigo na distância vilas que seguram nos dedos albatrozes e paquetes) e o nosso andar da Quinta do Jacinto vibrou como se um remoinho de bielas o fendesse de golpe, sacudindo nas prateleiras os ursos de barro e os elefantes de vidro, os palhaços de pano e o Wagner cromado, e fazendo cair, da cómoda para o chão, a caixita esmaltada em que guardas os anéis, as pulseiras, e os brincos de prata fingida que te dou no Natal, se me sobeja algum dinheiro do subsídio do Estado. O comboio deslocou-se para o Estoril enquanto retiniam campainhas e ampolas se acendiam e apagavam, desarrumou os prédios de Alcântara e tu rodaste no teu sono, sem deixar de dormir, até te voltares para mim num gemido infantil.
A Ordem Natural das Coisas, Lobo Antunes

Sem comentários:
Enviar um comentário