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quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

Folheto publicado a favor das vitimas do incêndio do teatro Baquet no Porto.

Página com o texto de Eça de Queirós

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O texto de Eça. Está incluído nas últimas Páginas:

Recentemente veio-nos às mãos o número único de uma publicação intitulada
LISBOA-PORTO, publicação essa feita pela imprensa de Lisboa em benefício das vítimas sobreviventes do incêndio do Teatro Baquet. Nele colaboraram os nomes mais brilhantes da época, como sejam, entre tantos outros: El-Rei D. Luís I, S. M. a Rainha D. Maria Pia, S.A. Real o Príncipe D. Carlos, S. A. R. D. Amélia, o Infante D. Afonso, Rafael Bordalo Pinheiro, Columbano Bordalo Pinheiro, Eduardo Coelho, Teófilo Braga, Henrique Lopes de Mendonça, Jaime Batalha Reis, Eça de Queiroz, etc., etc.

A propósito do incêndio do Teatro Baquet, no Porto, em 1888.

Assim devia ter sido nessa primeira desgraça do mundo. E assim é hoje, entre os homens, quando uma catástrofe, a terra que treme, um rio que submerge os campos, o chamejar de um vasto incêndio, nos dão o inesperado terror desta bruta e divina Natureza que nos contém, que é mãe e tutelar nutridora, e que bruscamente nos ataca com uma violência que nada discerne, e que, indiferentemente, cai sobre a fraqueza e sobre a arrogância, sobre o que já vai murchando e sobre o que ainda não floriu, sobre o monstro e sobre o santo.
Há então um ansioso aglomerar de gente, a mais oposta e mais vária, na mesma ideia – a ideia de fraternização, de unidade, de aliança contra a Natureza, senão já para debelar o desastre com que ela a todos podia esmagar, ao menos para minorar as curáveis misérias que o desastre a todos poderá estender. É este sentimento, este confuso medo de uma Natureza incerta e traiçoeira, que inspira, no fundo, as grandes correntes de piedade e de caridade.
Depois, está claro, volvido o rio ao seu leito, apagadas as labaredas, clareadas as ruínas e acalmada a Natureza, todos, já sem susto, se vão pouco a pouco desagregando, cada um volta ao seu interesse e ao ódio do seu vizinho – e o lobo recomeça a devorar o cordeiro. Mas, enfim, houve uma bela hora de harmonia, de fé partilhada, em que os corações bateram em ritmo, as vontades trabalharam em concordância – e da mesma emoção nasceu o mesmo heroísmo. Há, por isso, alguma coisa de nobre e de tocante em querer prolongar, mesmo artificialmente, este radiante momento de união moral. Eu, por mim, acho bom que ele se alargue, se exagere, ganhe até um começo de rotina e de
Os artistas da Renascença, quando pintavam o Dilúvio, nunca deixavam de mostrar, em evidência na tela, como alegoria e como lição, um cabeço de cerro – onde se amontoavam animais contrários, as feras e as presas, cordeiros e lobos, gazelas e tigres, os que assaltam e os que fogem, colados dorso a dorso, buscando um no outro refúgio, no pavor comum da maré negra que em torno sobe e os vai todos tragar... maneirismo. É um instante amável de paz que se rouba ao contínuo conflito humano! É como quando, num longo e áspero Inverno, rompe um dia de sol e doçura, em que tudo parece embelezar, uma bondade esparsa flutua, o céu azula a vida e os homens, sem motivo, sorriem quando se cruzam. Quem não desejaria espaçar este relance de suavidade e de luz?
Bem cedo voltará o vendaval e o negrume – e nos montes, como nas cidades, o lobo recomeçara a devorar o cordeiro.

Brístol, Abril de 1888.

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