Blog dum gajo do Porto acerca de gaijas, actualidade política e sem futebol. Aqui o marmelo não gosta de futebol

terça-feira, 8 de abril de 2008

Coisas da Alfândega

Depois de ler a carta, Fradique Mendes abriu os braços, num gesto desolado e risonho, implorando a misericórdia de Vidigal. Tratava-se, como sempre, da Alfândega, fonte perene das suas amarguras! Agora tinha lá encalhado um caixote, contendo uma múmia egípcia...
—Uma múmia?...
Sim, perfeitamente, uma múmia histórica, o corpo verídico e venerável de Pentaour, escriba ritual do templo de Amnon em Tebas, o cronista de Ramsés II. Mandara-o vir de Paris para dar a uma senhora da Legação de Inglaterra, Lady Ross, sua amiga de Atenas, que em plena frescura e plena ventura, coleccionava antiguidades funerárias do Egipto e da Assiria... Mas, apesar de esforços sagazes, não conseguia arrancar o defunto letrado dos armazéns da Alfândega que ele enchera de confusão e de horror. Logo na primeira tarde, quando Pentaour desembarcara, enfaixado dentro do seu caixão a Alfândega, aterrada, avisou a polícia. Depois, calmadas as desconfianças dum crime, surgira uma insuperável dificuldade:—que artigo da pauta se poderia aplicar ao cadáver dum hierograma do tempo de Ramsés? Ele, Fradique, sugerira o artigo que taxa o arenque defumado. Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado senão a múmia, sem ligaduras e sem inscrições, dum arenque que viveu. Ter sido peixe ou escriba nada importava para os efeitos fiscais. O que a Alfândega via diante de si era o corpo duma criatura, outrora palpitante, hoje secada ao fumeiro. Se ela em vida nadava num cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo, há quatro mil anos, arrolava as reses de Amnon e comentava os capítulos de fim de dia—não era certamente da conta dos Poderes Públicos. Isto parecia-lhe lógico. Todavia as autoridades da Alfândega continuavam a hesitar, coçando o queixo, diante do cofre sarapintado que encerrava tanto saber e tanta piedade! E agora naquela carta os amigos Pintos Bastos aconselhavam, como mais nacional e mais rápido, que se arrancasse um empenho do Ministro da Fazenda, para fazer sair sem direitos o corpo augusto do escriba de Ramsés. Ora este empenho, quem melhor para o alcançar que Marcos—esteio da Regeneração e seu Cronista musical?
Vidigal esfregava as mãos, iluminado. Aí estava uma coisa bem digna dele, «bem catita»—salvar do fisco a múmia «dum figurão faraónico»! E arrebatou a carta dos Pintos Bastos, enfiou para a tipóia, gritou ao cocheiro a morada do Ministro, seu colega na Revolução de Setembro,. Assim fiquei só com Fradique—que me convidou a subir aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e limão».
Pela escada, o poeta das LAPIDÁRIAS aludiu ao tórrido calor de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha rosa—deixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda:
—Sim, está de escachar!



Fradique Mendes
(Memórias e Notas)

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