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CHRONICA DE EL-REI D. PEDRO I do Fernão Lopes
Como el-rei mandou capar um seu escudeiro, porque dormiu com uma mulher
casada.
Era ainda el-rei Dom Pedro muito cioso, assim de mulheres de sua casa,
como de seus officiaes e das outras todas do povo, e fazia grandes
justiças em quaesquer que dormiam com mulheres casadas ou virgens, e
isso mesmo com freiras.
Onde aqueeceu que em sua casa havia um corregedor da côrte a que
chamavam Lourenço Gonçalves, homem mui entendido e bem razoado cumpridor
de todas as cousas que lhe el-rei mandava fazer, e não corrompido por
nenhuns falsos offerecimentos que trasmudam os juizos dos homens. E
porque o el-rei achava leal e bem verdadeiro, fiava d'elle muito, e
queria-lhe grande bem.
E era este corregedor muito honrado de sua casa e estado, e muito
praceiro e de boa conversação, e seria então em meia idade. Sua mulher
havia nome Catharina Tosse, briosa, louçã e muito aposta, de graciosas
manhas e bem acostumada.
Em esta sesão vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo,
e homem de prole, e n'aquelle tempo estremado em assignadas bondades,
grande justador e cavalgador, grande monteiro e caçador, luctador e
travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons
homens requerem,--chamado por nome Affonso Madeira,--por a qual rasão o
el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas mercês.
Este escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os
perigos que lhe advir podiam de tal feito, tão ardentemente se lançou a
lhe querer bem, que não podia perder d'ella vista e desejo: assim era
traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo não concorriam para
lhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus
deshonestos amores, firmou com o aposentador tão grande amisade que para
onde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre
Affonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do
corregedor. E havia já tempo que durava este aposentamento, sempre cerca
um do outro; tendo bom geito e conversação com seu marido, por carecer
de toda suspeita.
Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já
recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição
e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a
acabamento de seus prolongados desejos.
E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito
encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve
d'ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer
que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de
parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em sua camara, e
mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mór preço tem: de
guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto. E
pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e
viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de
sua natural morte.
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