Era no tempo em que começava a época de praia, em Junho, ou Julho, não me lembro, aliás era demasiado miúdo para me lembrar com precisão, ou com precisão de me lembrar, com claridade, das idas à praia, na Emília Barbosa, em Matosinhos, de eléctrico, apanhado na avenida Rodrigues de Freitas, mesmo em frente a um tasco, onde a criada, ou criadas, das tias compravam um quartilho de vinho,
- O menino vai sempre pela mão e o vinho vem na garrafa dentro da saca – verde – e tu, Maria não largas a mão do menino, e que esta é a ultima vez que ele vai contigo.
- Criadas e gente desta não tem a mínima noção do que levam, e mais, do que trazem, e que o vinho e a garrafa não são nada e que o menino, um rapaz, é que é importante numa família e essas coisas
E vinha o menino e a criada, ou criadas, ruas das Fontaínhas acima, e abaixo,
- Bom dia Sr. santeiro, como vão os santos?
Os gatos das tias, sempre gordos e luzidios, com nomes como tareco, minó – esse durou quase vinte anos e sobreviveu a Miramar, rua da Constituição e vicissitudes várias – farrusco, negrinha, pardo, outros cujo nome não me lembro, ou não me quero recordar,
- Anda cá negruxo, vê o menino,
E o negruxo babava-se, como as sopeiras quando viam o menino nú, e o snr Raul, que era policia, quase, ou mesmo, reformado, e vivia portas meias, ou meias portas, com uma quase viúva, que não era viúva, porque o marido estava vivo,
- Anda cá negruxo, vê o menino,
E o negruxo um dia caiu, a dormir, como convêm aos gatos duma janela do terceiro ou quarto andar, e não morreu, mas partiu a bacia.
- Anda cá negruxo, vê o menino,
E o negruxo foi posto a dormir, como convêm aos gatos, e no meio disto tudo, e foi por isso que os outros gatos morreram, porque o quintal era todo de pedra, e no meio do quintal havia um magnoreiro,
- Anda cá negruxo, vê o menino,
E o negruxo, antes de morrer o que viu, se os olhos dele ainda viam, viram o magnoreiro e as criadas que apanhavam os magnórios e o João pequenino que via o negruxo a morrer e a tia que dizia:
- Anda cá negruxo, vê o menino,
As criadas que subiam, ágeis, pelo magnoreiro, em cima da pedra que matou o negruxo, a verem a ilha que estava a toda a volta, como uma doença que enfermava quem lá vivia, e que nos dizia:
- Que esta gente é mesmo assim, como bichos
O quarto de banho deles não tinha teto e via-se o que lá se passava,
-Não olhe menino. Esta gente é mesmo assim. Dão beijinhos às meninas, lá na pombinha e ficam com os nervos como não deve de ser
E as criadas, acima, abaixo,
- O menino quer um copo de água
- Vai dar a Bonanza
- Anda cá negruxo, vê o menino,
Mas o negruxo já não via o menino, estava duro como o carvão no aicó, que servia só para acender o fogão de ferro no S. João, que nos outros dias o Gascidla substituíra, e as máquinas a petróleo,
- Pfffffff, pffffffff, que gatos não merecem gascidla nem mais que máquinas a petróleo
E no dia em que a criada – onde estás tu Maria Maluca? – Encheu a máquina a petróleo, alias duas, cozedoras eméritas dos peixes dos gatos, de gás a mais e ela explodiu, a máquina, não a Maria, Maluca de nome
- Esta gente é assim, um mínimo de confiança e explodem a casa!
- Anda cá negruxo, vê o menino,
Pensa o João passados estes anos todos.
Onde está o negruxo dos meus verde anos?
2 comentários:
Gostei!
Man, que trip ao passado! Nem me lembro do Bonanza, nem conheço Matosinhos (acho que vivi uns meses em Leça da palmeira durante uma comissão qualquer do Pai), nem as praias do Norte (na verdade, nem Portugal), mas adoro gatos:)
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