O Brasil não é um bom país para se nascer pobre. Não que seja bom ser pobre em qualquer pais do mundo mas há países em que é pior que outros. Se tivermos que ser pobres parece que é bem melhor sê-lo na Europa, especialmente do norte, que no Brasil. Num pais em que aparentemente basta deitar uma semente à terra para esta germinar e se multiplicar por milhões, em que os rios são do tamanho de mares e que os peixes, mesmo nos rios, são tão grandes que facilmente comem um homem, ou mulher. Que isto de feras não se fazem rogadas e comem com igual prazer e deleite ambos os sexos, crianças e mesmo – se este lhes passar perto, e ao alcance do dente, - um travesti, em que as cabeças de gado se contam por milhões, o problema fundamental dos pobres é a fome. Fome, humilhação e violência. Nas grandes cidades as favelas ou, para os menos desafortunados, os cortiços, onde a policia raramente entra. No campo mais espaço mas os mesmos problemas.
E Rozineide de Sousa teve o azar de nascer pobre e no Brasil. Não numa favela do Rio ou de São Paulo mas numa zona rural do nordeste do Brasil. O pai conduzia um camião de seu cunhado, mas segundo o mesmo, consumia mais cachaça que o camião combustível, razão porque lhe pagava tão pouco. A verdade, pensa agora Rozineide é que com o ordenado que ganhava não podia comprar muita. E é facto que entregava em casa quase todo o dinheiro que ganhava. Pouco lhe sobraria para tabaco, pinga e uma hipotética mulher na beira da estrada.
Também no Brasil o ordenado nunca chega. Naqueles tempos de inflação o dinheiro escoava-se como água na areia. A ajuda do tio, casado com uma irmã de seu pai, era o que a impedia a ela, à mãe e aos quatro irmãos de passarem fome. Pelo menos muita. Se a mesa não era farta havia pelo menos duas refeições por dia e alguma roupa para ela, para os irmãos e para a sua mãe. O tio era visita frequente da casa. Era padrinho dela e de sua irmã Suely e, durante as longas ausências do pai ao volante do camião, fazia ele de homem da casa, emprestando respeito à cunhada, em terra em que mulher com marido ausente é presa fácil de malandros e assaltantes. Era homem rijo e habituado à dureza da vida e tinha fama de disparar primeiro e fazer as perguntas depois. Rosnava-se que já tinha à sua conta a morte de mais que um homem mas não se pode afirmá-lo com certeza absoluta. Era comum, desde sempre, vê-lo sentado à mesa, depois de descarregar sacos com comida. Trazia-lhes roupas, medicamentos e muitas das vezes doces e brinquedos. Um Natal trouxe até uma televisão.
Gostava de sentar as meninas no colo e brincava com elas. Desde sempre se lembrava disso. Brincadeiras inocentes primeiro e menos inocentes depois. Rozineide sentia o pénis duro do padrinho a roçá-la quando se sentava no colo e o padrinho lhe pedia beijos.
- vá minina dá beijinho no padrinho que é seu amigo.
E Rozineide dava. E o padrinho metia-lhe a língua na boca e cheirava a cachaça e a cigarro. E depois despia-a e beijava-a no corpo todo.
- Não contem a ninguém meninas. O ti tio nos dá muita coisa. E pobre precisa muito.
E as meninas não contavam.
Nem contaram quando Suely ficara grávida. Teve de tirar a criança em Salvador.
O pai continuava a conduzir o camião e o dinheiro a não chegar. A mãe, já demasiado velha para satisfazer o benfeitor, fora definitivamente substituída pelas filhas que satisfaziam o ti tio.
- O padrinho vai deixar as minina bem. Hão-de ser ricas.
Um dia Suely conheceu o negrão Armando. Negro forte, sorriso bonito e corpo forte. Amara-o e desejara-o e tivera-o.
- Se padrinho te pega mata ele.
E o padrinho não sabia e o negro, descarado, já namorava á porta de casa e entrava na casa e dormia com ela e chamava o padrinho de velho baboso.
O Armando desaparecia uns tempos a negócio. Ia na capital e voltava com dinheiro fresco que gastava em pinga e em mulheres. Suely morria de ciúmes. O seu negrão por lá na capital. Devia andar a dormir com todas as mulheres da Bahia e ela jurava que não ia perder a protecção do padrinho por um negro, safado e sem profissão.
Mas quando ele voltava o sorriso dele incendiava a alma, e o corpo, de Suely. Faziam amor nos becos, na barraca dele e em qualquer sítio.
Como era de esperar o ti tio descobriu a marosca e instou o cunhado a acabar, com uma sem vergonhisse notória e pública que envergonhava a família onde minina só é mulher depois di casar.
E o pai falou com ela. E Suely contou tudo. O aborto. A mãe no quarto com o tio. A primeira vez. Quando foi com todas ao menos tempo. A mãe chorava e pedia-lhe para se calar. Rozineide transida não conseguia falar.
O pai só atinava a pedir.
- oxente, me diz que é mentira, que não é assim
A cara das mulheres não deixava dúvidas.
Saiu de casa e foi ao botequim. Bebeu até cair.
No dia seguinte entregou-se à polícia. Entregou a arma e não quis dar razões do crime. Disse apenas:
- Matei ele por porre. Não me lembro de nada.
O dinheiro escasseava e a barriga de Suely crescia. Não ia tirar mais criança e, de qualquer maneira, não havia dinheiro para isso. O negrão, quando tinha, dava algum dinheiro mas nada que chegasse.
Rozineide decidiu partir. Uma amiga falara-lhe de Portugal. Dinheiro fácil Português quer conversar e paga. Paga muito bem. E você já não é mais cabaço, pois não?
Pagaram-lhe a passagem e embarcou rumo ao Porto, tudo se misturava e misturada com mais dez meninas todas com o mesmo destino.
Chegou ao aeroporto Sá Carneiro mais morta que viva. O barulho, o medo, a distância
O Serviço de estrangeiros e fronteiras não é nada simpático com grupos de turistas, do sexo feminino, que viajam do Brasil para Portugal.
- Cês percebem que o cabra diz? Pena que eu não fale português.
A mais afoita das meninas, já de torna viagem, explicou-lhe que a língua parecia difícil ao princípio mas que depois se habituava.
E habituou. A primeira paragem foi numa residencial para descansar da viagem. Tiraram-lhe o passaporte e foi para o Pérola Negra onde foi apresentada ao patrão: um homem baixito e gordo, vermelhelhuço, que explicou as regras:
Do que os clientes consumirem com vocês aqui dentro metade é para a casa metade é para vocês. As saídas são para vocês mas não se esqueçam que tem de me pagar a viagem e o alojamento. Isto aqui não é a santa casa da misericórdia.
Nem Rozineide sabia o que era a santa casa da misericórdia nem tinha percebido metade do que homem tinha dito. Foi-lhe explicado e trocado em miúdos pelas colegas.
O que recebia por cada saída com os clientes era bastante, o diabo é que o bilhete nunca mais estava pago e a residencial era caríssima. Mesmo assim sempre ia enviando algum para as irmãs e para a mãe, que agora com mais uma boca para alimentar e o pai preso a coisa devia estar negra mesmo.
Se ao princípio a língua dos clientes parecia estranha e impossível de entender com o tempo percebia perfeitamente e até ia incorporando no sotaque nordestino expressões e mesmo frases completas, típicas do norte de Portugal e com algum sotaque portuense.
A vida não lhe corria mal de todo. Comia regularmente – até tinha de ter cuidado para não engordar – vestia-se razoavelmente e até conseguia enviar algum dinheiro para o Brasil. Andava a juntar algum dinheiro para ir visitar a família. Se por vezes era muito chato ter de aturar clientes bêbados que não havia maneira de se virem, ou que até ameaçavam de porrada, havia outros que pagavam de facto só para conversar e pagavam duas e três garrafas de champanhe só para conversar.
Fazia a ronda do botecos do Porto. Ia ao pérola e ao Paganini, ambos do mesmo patrão, tinha contactos com clientes já certos. Até fazia amizades. Tinha um cliente com quem tinha uma amizade em particular. Não sabia ao certo se era casado ou solteiro mas ela começava a gostar dele. E, o que é mais, ele dela.
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